domingo, 29 de abril de 2012


flâmula com pensamento de gandhi pendurada na parede, quadro pintado pela mãe, antologia poética de pablo neruda na estante, som de flauta de bambu, cheiro de incenso de almíscar, fita k7 do boca livre no rádio gravador... às vezes, quando sonho, estou no quarto antigo, jogando conversa fora com meus irmãos... quando acordo, o mundo é outro, não estou no velho quarto da casa antiga, que nem existe mais... mas com certeza ele está dentro de mim... ali, discutia-se política, religião, música, o futuro... minha irmã queria morar sozinha, eu ainda não sabia o que queria, mas tinha medo de ficar só... quem tem a viola pra se acompanhar, não vive sozinho, nem pode penar... jamais cheguei a morar sozinha, mas muitas vezes me deparei com a solidão... descobri que ela também está dentro de mim... o meu presente é bem diferente do futuro que foi sonhado... às vezes pior, muitas vezes melhor, simplesmente diferente... depois de tantos anos, o que me faz pensar hoje que o meu futuro pode ser sei lá o que... passado, presente e futuro também estão dentro de mim, junto com todos os sons, todos os cheiros, todos os sentimentos, todas as conversas, todos os livros, numa cidadela sem tempo... brincando de se esconder e de se mostrar...
(Ana)





 Minha mãe implicava com a flâmula do Gandhi, esse homem é de outra religião e vai trazer azar. deu um jeito de colocar um crucifixo por cima. As fitas agarravam, o toca fitas era de carro, ligado no autofalante (ai, a nova ortografia, como é que se escreve, alguém por favor corrija) da vitrola quebrada. O espaço era pouco e a liberdade vigiada, mas os dias eram tão bons...O que é que eu sonhava mesmo? O futuro, como é que deveria ter sido? Não lembro quase nada do que a gente falava, dos planos, do que parecia importante...mas continuo acordando no velho quarto, vendo as estrelas pela janela entreaberta e pela grade com os "s" feita pelo meu pai, aquela que eu não deveria subir por que era perigoso e não era coisa de menina. Só aí descubro que não acordei de fato e que a casa velha não está mais lá. Minha casa agora tem muito mais livros, imagens de Buda e até algumas fitas guardadas daquela época. Se ainda servem é outro problema, mas estão lá, junto com as flautas, as guitarras, os amplificadores e seus fios. Tem quadro que eu pintei, mas não são como os da Dona Neyde, nem chega perto. Também não tem cheiro de bolo. Não tem vocês perto para ouvir minhas histórias. Ou quem sabe tem .não é? Tempo e distância são tão relativos...tanto que podemos colocar na mesma história quem nunca esteve, mas por afinidade a gente carrega para lá, para ouvir música e falar bobagens, até a mãe pela milésima vez mandar a gente calar a boca e dormir...
(Neysi)


 Eu só fui ter um quarto pra mim, aos 18 anos. Maior idade e um quarto simples, armário e cama, que foi feita por um marceneiro sobre medida, já que o quarto era bem pequeno e ela me lembrava um caixão de defunto, mandei cerrar a parte dos pés, pra não me sentir enterrada naquela madeira a noite no escuro. Não tive irmãos conversando a noite, não compartilhei estórias, risadas, estrelas pela janela e nem músicas. Da janela do meu primeiro quarto, via o cemitério chamado Chora Menino, nome triste, localização do quarto era estranha, mas aquilo não me impactava, porque até olhar pela janela e ver tantos túmulos me fazia pensar que ali era um local de paz. Nunca tive um quarto como eu queria, até hoje é assim, não consigo deixá-lo como eu quero, é sempre simples; no quarto que era da minha mãe tinha uma imagem feita a lápis de Jesus, ela já havia morado na sala de outra casa, e ainda fecho os meus olhos e vejo esta imagem dentro de mim, apesar dela nunca ter me pertencido ou ao meu quarto. Ainda sonho em um teto de vidro para ver a noite, mas não poderia ser aqui, porque aqui o céu é encoberto feito eu!
(Aline)

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