quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Nádia


Me vejo procurando as palavras, tenho receio de parecer piegas ao falar de minha vida incomum. Sabe a família do comercial de margarina, onde a mãe prepara um pão quentinho pro filho e o pai olha apaixonado para a mãe, todos sorrindo?
Esqueça. Sou mais “gauche”do que Drummond.
Mãe solteira nos anos setenta em uma cidadezinha do interior do Paraná chamada Lapa, minha progenitora entrou sozinha na maternidade. Meus padrinhos, outros párias da sociedade: ele gay e ela lésbica. Quando entraram na igreja me batizar o padre engasgou e perguntou quem era o madrinho quem era a padrinha?
Nasci sem o nome de pai. Quando entrei na escolinha aos dois anos, duas mães foram retirar os filhos para não se misturarem comigo. Além dessa infectível sensação de ser diferente, de ter alguma coisa errada comigo, eu ERA diferente. Criança com bicho carpinteiro, imaginação sempre a mil, hiperativa, desligada, sensível, aos 4 anos já lia e escrevia, não que isso tenha me ajudado....fui considerada gênio e “retardada” com a mesma velocidade e as vezes, ao mesmo tempo. Matemática é como aramaico, sempre foi. Mas em compensação sempre ligada com música clássica, apaixonada por Chopin desde criança, aos seis eu disse que eu deveria entrar para o ballet porque toda atriz dançava ballet! Aos sete estava também no piano, e aos nove, resolvi ler um livro de adulto, porque sentia o desejo de viajar e conhecer o mundo, mas como não tinha condições, resolvi viajar lendo. O piano acabei desistindo por não ter onde estudar, mas cursei cinco anos. (detalhe o livro era Tocaia Grande, de Jorge Amado, e sou uma devoradora de livros até hoje).
Penso nessa época sempre com muito carinho, lembro de ser um animal quase incontrolável, o pesadelo de professores, a liderança das outras crianças. Penso nas tardes de janela, esperando por um homem que nunca veio, mas que tinha o rosto de Elvis Presley, o óculos rayban, inclusive. Ele parava do outro lado da rua, e ficava me olhando. De repente atravessava a rua e me dizia : “uau! Você é uma menina incrível!”
Aos quinze anos, como o Elvis não apareceu, fui até ele. Tudo bem, não era a cara do Elvis e o nariz era enorme para meus padrões presleynianos. Mas a atitude não era do meu herói. Ao entrar e me olhar, disse que eu não era nem um pouco parecida com ele. Pegou minha mão, disse deve ser estranho não é, um estranho ser seu pai. Mas você! Nunca me incomodou! Tive outra filha assim como você, NA RUA, mas me incomodou muito, exigiram meu nome e pensão e blá blá blá...e eu olhando para aquele homem, homem fraco, que não me disse nada ao coração, mas a quem eu devia minha vida de certa maneira. O doador de esperma que me trouxe ao mundo. Faço aqui uma pequena reflexão, cumprimento os pais de mel, os pais que criam seus filhos com amor mesmo que não sejam biologicamente seus. Esses sim merecem a alcunha de pai.
Um chocolatinho, uma revistinha, um dinheirinho, e disse que sempre me visitaria. Pura balela, nunca mais. Mas avisou aos filhos que eu existia no medo de que um filho namorasse a irmã “da rua”. A filha mais velha e o do meio falaram que eu continuava não existindo,o mais novo veio até a Lapa me conhecer. Fizemos amizade, mas quando se casou, diz o boato que, por algum motivo que nem imagino qual seja, a esposa tem ciúmes de mim, e ele me cortou. E eu hoje em dia, na verdade nem lembro que existem também, quero gostar de quem gosta de mim! A única história que reivindico para mim do meu doador de esperma, é de sua avó. Uma bugra de Blumenau, caçado por um Italiano no mato e amarrada para que se acostumasse na cidade. Essa índia as vezes ferve dentro de mim, sinto ela correndo nas minhas veias.
Relação com a mãe, sempre conturbada, bem dizer infernal. Água e vinho, nunca nos entendemos, tentamos conviver. Aos 15 anos o primeiro emprego, como Locutora de Rádio, que ótimo, pode-se então amenizar o comportamento da adolescente excêntrica com uma profissão. Aos 18, casei-me com um militar. Outra relação fadada ao fracasso, as diferenças eram um oceano inteiro, e o sofrimento teria sido menor para ambos se tivesse terminado antes. Engatei outro casamento em seguida, com alguém que viria a ser meu melhor amigo, mas apenas amigo...nisso passaram-se muitos anos, do rádio passei para o teatro, dois prêmios como atriz, sonhos de uma vida que acabaram-se quando o amigo decidiu que tinha que ir procurar uma felicidade real, e eu fiquei com os escombros de tudo que eu sonhara um dia. Não tinha nada de concreto profissionalmente, tinha antes a sensação de que tinha que matar um leão com as unhas a cada estréia nova, ou quando ia fazer teatro na periferia, dentro dos lugares mais inimagináveis!
Neste cenário fiquei sabendo da UnC e conheci uma mulher que faz pelos outros, nome dela é Cirene, ela me orientou quanto ao ingresso na Universidade, e até hoje, ela sempre que pode é meu amparo. Acabei entrando no final da segunda fase de Artes Visuais, e fico admirada de ver como as coisas das quais gostava ali eram valorizadas!
Passei momentos incríveis lá e fiz o que pude por meus colegas. Penso sempre que todos ali levam o nome da minha Universidade com eles, e todo conhecimento compartilhado é em benefício de todos. Mal imaginava que agora, no final, quando to me arrastando, com vontade de desistir, meus colegas seriam por mim! Explico....
Talvez lá no fundo, eu quisesse um comercial de margarina na minha casa. Queria uma família, uma forte figura masculina em meu lar, e no final das contas acabei sozinha, com duas filhas pra criar. O quarto de pensão do amor do meu coração está vago, ninguém mora ali, e mesmo que aparecesse alguém legal, como já apareceu, eu acabaria boicotando...no fundo, tenho medo de ficar com mais uma criança nos braços, e sozinha. Sou homem e mulher da casa, tenho que engrossar com o pedreiro, tenho que atender a porta fora de hora feito macho, tenho que trabalhar para sustentar as meninas. Alguém na minha vida de novo? Tenho medo de mais uma vez, não dar certo, por este motivo ou aquele. Penso que quis demais essa família dos meus sonhos, esse homem dos meus sonhos, e como ele não apareceu, perdi o sal da minha vida. Nem ao menos viver na profissão de atriz, coisa que amo, eu consegui. Me sinto deslocada, torta, errada e sem direção. Pensei seriamente em desistir, e talvez eu venha fazendo coisas para que isso aconteça, talvez no fundo eu não me considere digna de usar uma beca. De ser um pouco feliz. Mas Deus é tão bom pra mim que não tenho homem ao meu lado, mas uma colega de estágio muito, muito forte. E professoras como Raquel e Lucimara que me olham sem compreender minhas atitudes, mas que mesmo assim, ainda assim, me ajudam.
Gostaria que daqui a alguns anos, eu olhasse para trás e me visse como estou agora, feliz por estar mais forte. Não por ter enfrentado tudo com dignidade, estou apenas sendo empurrada por pessoas que desejam meu sucesso. Mas por ser uma sobrevivente.

(Nádia)

Um comentário:

Anônimo disse...

Nádia, quando li seu texto lembrei da música:

"A vida tem sons que pra gente ouvir
Precisa entender que um amor de verdade
É feito canção, qualquer coisa assim,
Que tem seu começo, seu meio e seu fim
A vida tem sons que pra gente ouvir
Precisa aprender a começar de novo.
É como tocar o mesmo violão
E nele compor uma nova canção
Que fale de amor
Que faça chorar
Que toque mais forte
Esse meu coração
Ah! Coração!
Se apronta pra recomeçar.
Ah! Coração!
Esquece esse medo de amar de novo."

O bom da vida é que todos os dias a gente pode recomeçar, não te detenhas.
Aline